Autoras: Rita Oliveira Pelica, Doutoranda de Políticas de Desenvolvimento de Recursos Humanos do ISCSP e Patrícia Jardim da Palma, Professora do ISCSP – Universidade de Lisboa, Coordenadora da Escola de Liderança e Inovação; Coordenadora das Pós-graduação em Empreendedorismo e Desenvolvimento do Negócio; Coordenadora das Pós-graduação em Gestão de RH do ISCSP.
O mundo do trabalho, marcado pela incerteza e instabilidade constantes, regista atualmente grandes desafios. Não só do ponto de vista do teletrabalho, mas também pela necessidade de flexibilização e de definição de diferentes modelos e do reconhecimento de que “one size doesn’t fit all”. Falar do futuro do trabalho, no presente, assente na tradicional abordagem dicotómica do trabalho é manifestamente redutor. Fala-se em trabalhar numa organização (ser empregado, assalariado) ou em ser empreendedor (ter o seu negócio próprio, criar o próprio emprego) como se fossem duas possibilidades mutuamente excludentes. A “gig economy” tem exatamente a premissa oposta: Assenta na diversidade de possibilidades profissionais que um indivíduo pode explorar, junto de várias entidades, com diferentes opções de colaboração (os denominados “side hustles” ou “projetos paralelos”).
” (…) empreendedores híbridos que consequentemente se tornaram empreendedores a tempo inteiro apresentam maiores taxas de sobrevivência dos seus negócios”
Neste enquadramento, constata-se que o conceito de empreendedorismo tem sido sobejamente estudado, mas à luz da literatura existente encontra-se a oportunidade de preencher lacunas e integrar na narrativa o conceito de empreendedorismo híbrido. Na “escada do empreendedorismo” construída por Van der Zwan et al. (2010), não há inclusão deste “degrau híbrido”, havendo uma sequência ordenada entre uma fase inicial em que se está a pensar na possibilidade de se criar um negócio, de dar alguns passos nesse sentido, até à criação efetiva do negócio. Mas não há uma menção clara a este ponto que pode ser de viragem.
Empreendedorismo híbrido é um conceito recente na literatura, tendo sido cunhado por Folta et al. (2010). Na definição destes autores, empreendedor híbrido é aquele que mantém um trabalho pago como sua fonte primária de rendimento, tendo um vínculo contratual com uma organização, mas simultaneamente gerando outras fontes de rendimentos oriundas de projetos por conta própria (isto é, enquanto empreendedor). Estes autores identificam a possibilidade de entrada no mundo do empreendedorismo (criação do próprio emprego/negócio) mantendo o “trabalho assalariado” (o emprego) como “fonte primária de emprego”. Como racional teórico para esta “escolha”, os autores apresentam e estudam os seguintes três motivos: 1) geração de rendimentos suplementares; 2) obtenção de benefícios não monetários e 3) um caminho para a transição.
Este estudo evidencia e valida que a “entrada híbrida” no mundo do empreendedorismo influencia, mas não determina a sua entrada: Há preferência pela entrada híbrida em indivíduos com menos experiência em empreendedorismo e em clima de incerteza, por aqueles que têm maiores custos de troca e maiores custos de oportunidade. Raffiee e Feng (2014), baseados no trabalho de Folta et al. (2010), fazem um estudo mais extensivo sobre a entrada e sobrevivência no mundo do empreendedorismo, com foco na via híbrida. Da mesma forma, contribuem para a pesquisa com base na real option theory, um modelo para fazer investimentos em contextos arriscados e incertos. Estes autores identificam as características pessoais que são determinantes na forma de entrada no mundo do empreendedorismo. No seu estudo, concluíram que indivíduos avessos ao risco (1) e com baixa “core self-evaluation” (confiança nas suas próprias competências) (2) têm maior probabilidade de entrar no mundo do empreendedorismo pela via híbrida (e não optar pela via do empreendedorismo a tempo inteiro); empreendedores híbridos que consequentemente se tornaram empreendedores a tempo inteiro apresentam maiores taxas de sobrevivência dos seus negócios, do que empreendedores que se iniciaram a full-time (3). Por último, a “vantagem da sobrevivência” é conduzida pelo efeito de aprendizagem da transição híbrida (4). A experiência empreendedora foi utilizada como moderador. Este trabalho também evidencia a relevância do tema, referindo a explosão no crescimento do empreendedorismo híbrido – fomentada pelo papel da tecnologia, que reduz custos e compromissos de tempo para quem lança um negócio.
Neste enquadramento, importa também perceber como é que os motivos não financeiros e financeiros dos empreendedores a part-time influenciam a sua propensão em se tornarem empreendedores a tempo inteiro (Block & Landgraf, 2016). Estes autores concluíram que a motivação para ter suplemento de rendimentos e reconhecimento social está negativamente associado a essa transição; os motivos da independência e da autorrealização estão relacionados positivamente com a transição e, finalmente, a motivação para seguir um “role model”, sucesso financeiro e inovação, não é significante.
Mais recentemente, Ahmetoglu et al. (2020) estudam os mecanismos motivacionais que explicam a relação entre as tendências empreendedoras e a intenção de saída (turnover) entre colaboradores empreendedores. Paradoxalmente, descobrem que estes colaboradores apresentam naturalmente um maior job engagement (com o desejo de ficar na organização) mas também têm uma maior propensão para criar o seu negócio (e, consequentemente, deixar a organização). Também o bem-estar decorrente da possibilidade de desenvolvimento pessoal proporcionado pela organização do colaborador (com consequente impacto positivo no work engagement) pode motivar a permanência dos colaboradores na organização.
Nesta linha de pensamento, Viljamaa & al. (2017) apresentam dois conceitos subjacentes ao de empreendedorismo híbrido, com base na sua intenção de permanência num formato híbrido ou não – designando-os de empreendedores híbridos permanentes (sem intenção de se tornarem empreendedores “puros”) ou temporários (utilizando esta via como uma oportunidade de transição para a via exclusiva do empreendedorismo). No seu estudo, evidenciam que apenas uma minoria da sua amostra pretende “dar o salto” para criar o seu emprego/ negócio e, daqueles que o fazem, fazem-no por motivos de realização pessoal.
Em jeito de conclusão, o conceito de empreendedorismo híbrido, assente numa fonte primária de rendimento numa organização, combinando a realização de projetos por conta própria (Folta et al., 2010) visa acabar com a dicotomia “all or none”, trabalho pago versus criação do próprio emprego (empreender) e desmistificar que tem de se escolher entre uma ou outra realidade. Alguns autores apontam para o futuro híbrido do trabalho (Bögenhold, 2019; Demir et al., 2020) como um fenómeno crescente face ao contexto económico atual e a consequente falta de segurança no trabalho inclusivamente há estudos que revelam que mais de 50% dos empreendedores iniciaram os seus negócios enquanto ainda eram empregados (Luc et al, 2018) – o que pode ser entendido como uma espécie de dark side do empreendedorismo híbrido para as organizações – com efeitos no seu turnover real. Mas não existirão também vantagens nesta abordagem híbrida? Importa então dar continuidade a este tema, pela sua relevância não só teórica, mas também prática, no contexto atual, com novas possibilidades de investigação aplicada. Fica a pergunta que Block e Landgraf (2016) colocam na sua investigação: serão os híbridos o novo normal? Ou não existirá uma normalidade, neste “novo mundo do trabalho”, no qual as possibilidades são diversas e no qual os trabalhadores podem ser agentes de mudança?
Do ponto de vista das organizações, este perfil híbrido dos colaboradores pode revelar-se muito benéfico, especificamente a sua experiência prática de empreendedorismo e o seu mindset empreendedor. Leia-se ter um bright side, como complemento ao dark side já mencionado. Assim sendo, as organizações deverão estar atentas e definir políticas de desenvolvimento de recursos humanos que promovam o work engagement destes colaboradores e, consequentemente, a sua permanência na organização, pois estes serão vitais em contextos complexos, de mudança permanente e com a certeza da incerteza. As competências pessoais de resolução de problemas, proatividade, criatividade e pensamento crítico serão extremamente valorizadas e facilitadoras de uma cultura organizacional que se quer inovadora e que seja pensada estrategicamente.
Artigo publicado na edição nº 135 da RHmagazine, referente aos meses de julho/agosto de 2021.